“A culpa é dele, doutor. Como você espera que eu fique bem nessa situação?”
Na minha frente Márcia (nome fictício) está brava. Eu sempre a vejo assim. O ódio é tão material que poderia cortá-lo com uma faca. Ela está brava com o irmão com o qual vive em companhia da mãe. Esta, idosa, tem a doença de Alzheimer e precisa de cuidados especiais. Mas o irmão, apesar de ter mais de 50 anos de idade, nunca trabalhou, vive às custas da mãe e pega dinheiro/comida/remédios que a mãe precisa, deixando-a em necessidade profunda. A minha paciente sente um ódio muito profundo desse irmão, e está mergulhada em sintomas depressivos e ansiosos. Sua vida está em frangalhos. Sua pele apresentou uma alteração auto-imune que piora com o estresse, desfigurando seu rosto e mãos. Ela não contém a revolta:
“É tudo culpa do meu irmão. Sinceramente, doutor, penso em mata-lo todos os dias.”
A história dessa paciente e muitas outras e outros que passam pelo consultório me fez pesquisar mais sobre um tipo de auxílio para casos em que a mágoa parece ser o tema central da dor psíquica. Me deparei com conhecimentos científicos de um campo muito interessante: o perdão. Comecei a estudar intervenções que ajudassem as pessoas a desfazer da mágoa, e aprender sobre um processo que apesar de muito falado, é pouquíssimo conhecido. E é uma solução eficaz e poderosa para a raiva. Resolvi compartilhar algumas idéias do processo de perdão, que tem feito tão bem para muitos pacientes, para mim, e que pode fazer bem para você.
Você está com raiva?
O primeiro passo para alcançar o perdão é reconhecer que sente raiva e mágoa, e, curiosamente, para muitas pessoas esse é o passo mais difícil. Márcia sabe que sente raiva do irmão, e acredita que essa raiva é completamente justificada. Por outro lado, ela se sente mal ao sentir raiva de todo o resto em sua vida, e de sentir raiva pelos filhos e parentes, e sua raiva acaba vacilando entre sentir raiva do irmão que abusa da mãe e sentir raiva de si por estar tão irritada com todos.
Você está buscando perdão condicional?
Algumas pessoas só estão dispostas a perdoar se asseguradas que a pessoa perdoada irá modificar seu comportamento. Márcia alegremente perdoaria o irmão se ele se ajoelhasse na sua frente e lhe pedisse perdão e nunca mais voltasse a roubar as frutas de sua mãe. Ela não para pra pensar que o que ela queria não era perdão- era vingança, obtida através da humilhação daquele que abusou/magoou.
Um dos primeiros aprendizados no processo de perdão é que o perdão muda A PESSOA QUE PERDOA.
É muito comum que pessoas presas em uma situação abusiva relutem em perdoar, especialmente se já perdoou o abusador no passado, apenas para se verem vítimas de mais abuso de sua parte. Márcia imaginava que perdoar o irmão o daria liberdade de continuar praticando abusos contra a sua mãe, reforçando o comportamento.
Muitas pessoas confundem perdão com confiança. Eles não são a mesma coisa.
Perdão não é uma barganha ou negociação. O perdão não é uma varinha mágica que nos permite controlar os outros. Uma esposa não pode perdoar se dizer “ Eu vou perdoar meu marido mas então ele precisa mudar”. Perdão é um risco, porque nunca sabemos exatamente quais resultados ele vai ter.
Algumas vezes a pessoa perdoada se modifica. Outras vezes não há mudança.
Ressentimento e raiva não desaparecem do nada. Uma mulher magoada pode separar-se do marido, conseguir a guarda dos filhos, a casa, e cada centavo do seu ex-marido, mudar de cidade, casar de novo e começar uma nova vida. Mas se ela não perdoar, pode sofrer de problemas ligados ao ressentimento e seus filhos serão afetados também, causando problemas durante toda a sua vida o que a deixará ainda mais ressentida, com o sentimento de que todos os seus sofrimentos são “culpa” do ex-marido.
É por isso que vemos casais que se separaram e profundamente ligados pelo ódio que cultivam um do outro, em um processo que os acorrentam por ainda mais tempo.
Perdão é um processo
Perdoar é um processo. As pesquisas mostram que simplesmente dizer “eu te perdoo” não é suficiente. As pessoas precisam passar pelo processo de entender seus sentimentos e de tomar atitudes concretas para chegar no perdão.
Geralmente as pessoas que compartilham suas histórias conosco trazem que perdoar não fez que a dor desaparecesse por completo, mas que ela se torna muito mais suportável e que a mágoa apenas tornava a situação mais difícil.
No quesito científico, a evidência sobre a terapia do perdão é ainda anedótica. Mas estou convencido que nos casos em que o ressentimento é fator central da dor, seus resultados podem ser poderosos.
Processo de perdão em sobreviventes de abuso sexual
A pesquisador Suzanne Freedman estudou 12 casos de mulheres entre 24 e 54 anos que eram sobreviventes de incesto (abuso sexual pelos pais). Todas eram ansiosas e deprimidas e sofriam de baixo autoestima ao entrar no programa. Nenhuma havia perdoado o molestador. Os pesquisadores dividiram essas mulheres em dois grupos: 6 receberam instruções em como realizar o processo de perdão. 6 receberam terapia psicológica tradicional.
As que estavam no grupo do perdão melhoraram consideravelmente. Com o passar da terapia, os índices de depressão e ansiedade melhoraram muito, assim como a esperança e otimismo com o futuro. As 6 conseguiram perdoar os pais. Uma delas visitou pela primeira vez o túmulo de seu pai. Outra cuidou de seu pai durante câncer em estágio terminal. Após 1 ano, o grupo de tratamento tradicional não havia apresentado melhora. Os pesquisadores passaram a incluir o processo de perdão nas suas terapias. Após 14 meses todas continuavam demonstrando sinais importantes de melhora física e psicológica.
Você está pronto para se libertar da prisão emocional?
Ressentimento pode ser uma forma de manter o outro em uma prisão emocional. Enquanto o ofendido mantiver a raiva e a mágoa, o outro está preso em uma cela sem escapatória. O ofendido raramente percebe, no entanto, que se mantém preso junto ao ofensor.
Nos posts futuros, traremos algumas considerações acerca do processo de se chegar ao perdão. Convido você a dar um passo rumo a liberdade da raiva. Um processo que pode ser difícil, intenso e extremamente recompensador. Se a raiva está muito presente na sua vida, talvez seja o momento de descobrir o porquê.
Márcia ainda está presa no casulo emocional da raiva pelo irmão. Mas pela primeira vez ela começa a perceber que perdoá-lo pode ser sua única chance de continuar a viver. Concordo com Bishop Desmond,que, vítima de inúmeras injustiças, disse:
“sem perdão não há futuro”.
Obs- Márcia é um nome fictício de uma paciente real, cuja história foi adaptada sob sua autorização com fins educacionais.